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sábado, 16 de abril de 2016

Rua da amargura


Quem não gostou de Cloverfield: Monstro, o terror/ ficção científica em primeira pessoa que foi sucesso em 2008, pode ter desprezado o anúncio, apenas dois meses antes do seu lançamento, de que haveria um filme, também produzido por J.J. Abrams, intitulado Rua 10, Cloverfield. A grata surpresa, porém, foi seu primeiro trailer, que deixou claro que esta produção não era exatamente uma sequência da anterior e que, principalmente, não usava a mesma técnica de "filmagens encontradas", que causa mais náusea que tensão.

Rua 10, Cloverfield acaba sendo para quem não gostou de Cloverfield: Monstro, para quem gostou de Cloverfield: Monstro e para quem não assistiu a Cloverfield: Monstro. Mas, sobretudo, Rua 10, Cloverfield é para quem não sabe nada sobre o filme. Parte da magia é o espectador abraçar o desconhecido, assim segurando a mão da protagonista. (vale um alerta que os excelentes primeiros cartazes e trailer americanos foram sucedidos por péssimos e reveladores materiais da divulgação 'internacional')

Abrindo com um quê de Psicose (uma donzela em fuga, aparentemente mal planejada e certamente rumo a um destino pior que o atual) o longa também remete ao início de O Iluminado, com tomadas aéreas do veículo da personagem principal ao som de uma enervante (e brilhante) trilha sonora. Se isto tudo já não fosse suficiente para criar o clima correto, a forma como o letreiro inicial se apresenta beira o genial e consolida bem em que tipo de filme que o espectador está se aventurando.

O que não significa seja possível saber exatamente o que esperar. De uma forma muito hitchcockiana, o diretor estreante Dan Trachtenberg se aproveita de um roteiro inteligente e bem amarrado para criar uma tensão psicológica intimista, usando eficientemente o espaço confinado da maior parte da história sem cair na mesmice ou no repetitivo. Em um estado latente de terror, o público é continuamente apresentado a novos fatos e facetas e é levado constantemente a mudar de opinião sobre a trama que está desenrolando.


As atuações deste reduzido elenco são afiadíssimas, com personagens que não desandam pro erro comum de filmes de suspense, mas agem com humanidade e reagem de forma realista, e não somente porque o roteiro pede por algo que é necessário para criar a próxima cena. Mary Elizabeth Winstead dá todas as dimensões para Michelle ser identificável e querida pelo público, permitindo que este não só a conheça gradativamente, mas também conheça gradativamente tudo o mais junto com ela. E John Goodman dá um show, deixando seu Howard crível, num papel que poderia facilmente descambar pro caricato. Suas nuances e ambiguidades são a fonte de grande parte da tensão do filme e fica difícil definir se trata-se de um louco paranoico, um bem-intencionado mal-interpretado ou um mentiroso psicopata.

- Atenção: SPOILERS nos próximos parágrafos!

Provavelmente um pouco de cada.

Paranoia é o assunto mais óbvio da produção, mas os principais temas são abuso doméstico e cárcere privado, como nesses tristes casos que aparecem nos noticiários internacionais. De uma certa forma, é uma espécie de mistura de O Abrigo, O Quarto de Jack e... Guerra dos Mundos. Sim, o filme passa por uma aparente (e normalmente perigosa) abrupta mudança de gênero no seu ato final. Esta guinada, além de ser um prato cheio para os fãs de ficção científica, não deveria ser exatamente inesperada, levando em conta a expectativa que a inclusão do 'Cloverfield' no título da produção gera. Mas, mais do que isso, ela casa como metáfora para estes temas principais e serve perfeitamente para encerramento do arco da protagonista.

Assim como bem explorado em O Quarto de Jack (spoiler!), a nova vida fora do cárcere após um período de abuso não é nada fácil. No início até muito mais complicada que aquela deixada para trás. Muito tem que ser entendido, superado e readaptado - a vida antes da traumática experiência já não existe mais.

E a invasão alienígena possibilita o fechamento do arco de Michelle. A moça que foi apresentada fugindo e passou o filme inteiro tentando fugir, do abrigo e depois das ameaças na fazenda, nas cenas finais se vê no dilema de continuar fugindo ou de poder, por escolha própria, partir para um confronto. Sua decisão faz o espectador deixar o cinema com um sorriso no rosto, não somente por ter testemunhado a evolução da personagem, mas também porque ela propicia o encerramento da projeção com belíssimas imagens.

Que JJ Abrams continue descobrindo novas histórias para contar neste universo de Cloverfield e que Dan Trachtenberg consiga manter este alto nível em sua carreira.


Rua Cloverfield, 10 (10 Cloverfield Lane), 2016




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