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sexta-feira, 11 de outubro de 2019

Piada de duplo sentido


Quando surgiram as primeiras notícias sobre um filme solo de origem do Coringa, torci o nariz (e olha que é um nariz bem grande). Sempre achei que os grandes vilões são mais interessantes quando nós não sabemos de verdade quem são (um abraço para você, Darth Vader dos midchlorians vivos especiais). Uma das coisas que tornava o Coringa de Heath Ledger em Batman: O Cavaleiro das Trevas tão ameaçador era justamente isso. E cada vez que ele contava uma história diferente sobre a origem de suas cicatrizes, mais imprevisível ele se tornava.

Minha resistência ao novo Coringa foi caindo com o tempo, a cada nova notícia e com o Leão de Ouro em Veneza, a ponto de inclui-lo na minha lista dos mais esperados do ano. Consegui ir ao cinema livre de spoilers, mas não sem saber vários dos comentários que vinham surgindo.

"Não é um típico filme de super-herói". Definitivamente! "É um estudo de personagem, denso psicologicamente e violento". Sem dúvida. "A atuação de Joaquin Phoenix é fenomenal e digna de prêmios". Assino embaixo. "O filme não sabe lidar muito bem com seus temas e pode ser potencialmente perigoso". Talvez tenha havido alguns exageros nas reações, mas no geral, a afirmação está correta.


A verdade é que sem o pano de fundo já notório na cultura pop mundial, o público estaria diante de uma história desprovida de propósito. Coringa funciona bem quando se embasa ou faz referência ao universo de qual veio, mesmo com todas as liberdades e desvios. Se fosse sobre um palhaço chamado Carnaval, na cidade de Nova York, com um milionário chamado Taylor West, ficariam expostas as fragilidades da trama e os tropeços de roteiro.

De um desencadear de coisas que parecem vir mais ao acaso para o protagonista, em vez de acontecerem por causa de ações e decisões dele, até um discurso final deslocado, desnecessário e implausível que serve só para expor para o público os temas do filme, existem inúmeros pontos que não seriam perdoáveis em outras produções.

Mas a já mencionada atuação de Phoenix, a trilha sonora envolvente da islandesa Hildur Guðnadóttir (também ótima em Chernobyl), o investimento emocional e, mais uma vez, a graça (perdão da palavra) de ver a ambientação de parte do universo DC sob toda uma nova perspectiva, como nunca antes, nos levam a esquecer os deslizes do filme. O diretor, mais conhecido por Se Beber Não Case, surpreende e cria momentos memoráveis, incluindo uma cena que se torna instantaneamente clássica, pulando da violência gráfica para um misto de humor e tensão, que faria inveja em Quentin Tarantino.

!Agora não tem jeito de não entrar em spoilers!

Falando em referências, as duas mais óbvias e mais comentadas são as a Taxi Driver e a O Rei da Comédia. Mas, por várias me peguei pensando em Psicopata Americano. E aí entramos nas ambiguidades da obra.

A revelação de que o envolvimento de Arthur Fleck com a vizinha era apenas na sua cabeça reforça a teoria de que o caso de sua mãe com Thomas Wayne nunca existiu e que ele, Arthur, estaria tendo um distúrbio similar ao de sua mãe. Ainda assim, não é conclusivo. Particularmente, gosto mais da versão de que Arthur é filho de Wayne, que teria forjado e forçado um registro de adoção para Penny Fleck. Ironicamente, Wayne indiretamente criou o Coringa, que indiretamente criou o Batman.

Outro ponto em aberto, também reforçado pelo caso com a vizinha, mas levantado só no desfecho, é o de que tudo aquilo teria acontecido na imaginação de Arthur enquanto ele estava no hospício (remetendo ao agora suposto flashback no início do filme em que ele bate a cabeça repetidamente numa porta branca - e daí as pegadas de sangue no corredor na cena final). Esta é uma leitura plausível, pelo que é apresentado, mas que para mim diminui o filme drasticamente (e que me faz lembrar ainda mais do porquê não gostei de Psicopata Americano). Nesta versão, de que quase nada aconteceu de verdade, eu não gosto de Coringa.

!Fim de spoilers!

Mas, desconsiderando as interpretações que não me agradam, Coringa facilmente figura entre os melhores do ano, provando ser um daqueles raros feitos que mesclam bem a pegada artística com a cultura pop.


Coringa (Joker), 2019