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quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

Humor em tempos de cólera

 

Como pouquíssimas por aí, Os Banshees de Inisheerin é uma comédia que consegue te arrancar boas risadas mas que também parte o seu coração. A premissa e o escopo são pequenos, mas isto não impede a história de ter guinadas inesperadas e uma escalada, dentro dos limites, do que está em jogo. A fotografia valoriza o cenário bucólico e a natureza singular da ilha irlandesa fictícia que abriga figuras peculiares e sinceras construídas por um roteiro afinado e por atuações ímpares de Colin Farrell, Brendan Gleeson, Barry Keoghan e Keery Condon (a alma e a sensatez do filme). "Do pessoal e específico se chega ao universal" foi dito uma vez, e o que este longa entrega é exatamente isto: um microcosmo do mundo atual.

Os Banshees de Inisherin (The Banshees of Inisherin), 2022




Dado o tema sério e pesado, a última coisa que eu esperava ver em Argentina, 1985 era a presença de humor. Sem se esquivar dos momentos em que precisa ser sério e pesado, o filme  encontra bastante espaço para o humor, funcionando supreendentemente bem. O que beneficia a produção (e a humanidade), pois a abordagem "mais leve" torna o longa mais acessível para um público maior e para uma nova geração que já queira evitar o assunto após tanta produção "mais pra baixo". 

Argentina, 1985 (idem), 2022




Demora uma entrada e alguns pratos para O Menu dar as caras, e ao subverter as expectativas pode não agradar.  Abraçando o humor negro e misturando em uma panela um monte de ingredientes - privilégios, servidão, obsessão, vingança, pecados capitais - o filme parece estar cozinhando um prato grandioso e sofisticado, mas acaba é deixando um gostinho amargo na boca. SPOILER Os roteiristas nos fazem acreditar que têm um plano elaborado em mente e nos aguçam um final à lá Seven, mas o que servem é uma réplica do de Ratatouille.

O Menu (The Menu), 2022




sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

O homem e suas fábulas poderosas


Na ausência de aparelho de TV em casa (política moral e educacional no lar durante minha infância), meus pais levavam minhas irmãs e eu ao cinema com uma frequência que hoje avalio (mas não reclamo) como alta ou, pelo menos, acima da média para aquela primeira metade dos anos 1980 no Brasil. Não sei exatamente quando (algo depois do Natal de 1982, que foi a data de estreia), mas me lembro exatamente onde (Cine Acaiaca, plateia superior - cinema com "dois andares" era o máximo) assistimos a E.T. - O Extraterrestre. Muito provavelmente não foi de fato o primeiro filme que vi no cinema, mas certamente minha primeira lembrança de sala de cinema.


Fui simplesmente arrebatado. Ali começou um verdadeiro fascínio. Pelo filme em si, claro, me lembro de fazer album de figurinha e tudo mais que o marketing limitado da época dava direito, mas principalmente pela sétima arte de forma geral. E entre novos lançamentos na telona e descobertas antigas na telinha (a TV acabou sendo liberada em casa, de forma controlada, depois do surgimento do videocassete) o nome de um cineasta surgia repetidamente em quase todas obras que eu mais gostava: Steven Spielberg.



Talvez eu tenha chegado num ponto de não ser capaz de avaliar seus filmes de forma não passional, mas o fato é que era simplesmente impossível não gostar do que ele andava fazendo, como diretor e até mesmo como "só" produtor. Acompanhei sua carreira e, mesmo não sendo meu interesse usualmente, uma grande parte das histórias de sua vida pessoal. Inabalável após décadas, me vi um tanto cético quando começou seu novo projeto, semi-autobiográfico - inspirado na sua própria infância e adolescência. Julguei desnecessário e não via como emergir novos fatos interessantes sobre sua vida. Tinha convicção que seus anseios e posicionamentos já haviam sido expressos indiretamente ou via metáforas em seus filmes.


A desconfiança com Os Fabelmans foi diminuindo quando começaram a surgir as primeiras reações dos críticos, mas só dissipou-se de vez mesmo após os primeiros minutos de filme. Minha mãe sempre contou que meu vínculo emocional com E.T. foi uma mistura de deslumbre e medo, em mesma proporção. Quando o pequeno Sammy Fabelman sai tanto deslumbrado quanto amedontrado de sua primeira experiência no cinema, percebi que o longa seria uma jornada pessoal não só para Spielberg, mas me atingiria fortemente também.


Claro que nunca tive pretensões profissionais, mas cinema sempre foi parte da minha vida. E, mesmo que possa ter demorado a perceber isto conscientemente, não era só pelo entretenimento, pelo escapismo, mas por traduzir incontáveis vezes em uma forma de entender e enxergar o mundo - perceber como o poder da história pode afetar nossa vida real. E, se não criar estas histórias, ao menos indicar, recomendar para se fazer expressar. A beleza de Os Fabelmans é que não é sobre se tornar diretor de cinema, ou só sobre viver de arte, mas sobre a magia do cinema como um todo e como que as histórias são e podem ser uma forma de comunicação, de exteriorização, de sentimentos difíceis.



Embora seja embasado em fatos reais, o filme é uma história - uma fábula até (trocadilho intencional - Fabelman, fable man). E pode ser criticado por isto: parecer menos real e mais uma contação de caso quase fantasiosa daquele tio-avó sobre suas façanhas da juventude. Mas, quando o tio-avó é um cineasta tão talentoso quanto Spielberg (e todas sua qualidades, seu tino visual, estão à mostra), não há o que reclamar. Temos um filme bonito, emocionante e, surpreendentemente, cômico. Spielberg (que co-escreveu o roteiro com Tony Kushner) se permite fazer um humor inédito, com temas improváveis como religião e bullying - este último rendendo um momento de metalinguagem simplesmente genial. Aliás, também é cômico-metalinguagem-genial o quadro (!) final do filme.  


Claro que o diretor não faz a obra sozinho e habituais parceiros como John Williams, na trilha sonora, e Janusz Kaminski, na direção de fotografia, estão como o habitual: impecáveis. O que não é de parceria habitual, mas também impecável, é o elenco, passando pelos veteranos Michelle Williams, Paul Dano e Judd Hirsch, até Gabriel LaBelle, que encanta como o Sam jovem. Aliás, todo o elenco-mirim/ jovem impressiona positivamente, a ponto de nos fazer lamentar pelo pouco tempo em tela (e pouco desenvolvimento de personagem) das irmãs do protagonista.


Longe de perfeito, Os Fabelmans poderia ser recebido como apenas mais um filme de amadurecimento e, neste sentido, desnecessário. Mas, somente por um espectador muito casual. Para aqueles que um dia foram fisgados pela magia dos E.T.s e o que seja nas telonas das salas escuras dos Acaiacas da vida e nunca mais conseguiram largar, é mais que necessário, obrigatório.  


Os Fabelmans (The Fabelmans), 2022