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terça-feira, 8 de março de 2022

Gostar ou não gostar...


Sempre me vi envolvido em debates dizendo "só porque você gosta do filme não significa que é bom e só porque você não gosta não significa que é ruim", complementando que "não gostar de algo que é avaliado como bom é muito normal, pois gosto é subjetivo e envolve emoção e histórico pessoal".

Como constantemente esbarro em resistência bruta à esta linha, muitas vezes pondero se de repente não estou simplesmente errado. Então, é um alívio (com pitada de orgulho) descobrir grandes mentes com a mesma linha de pensamento.

Pra ficar perfeito, só faltou Leandro Karnal incluir '...filmes...' no final deste texto.


Você gosta de arte?

Eu amo. Eu era fascinado pelos quadros que encontrava em livros de arte. Ficava vendo e passando o dedo muito antes de compreender qualquer conteúdo ali representado.

Parece que havia nomes que eu sempre soube, ou, pelo menos, nunca me lembro de ter visto pela primeira vez: Leonardo, Michelangelo, Rafael.

Há nomes que vieram depois: Mondrian, De Chirico, Lichtenstein.

Por fim, existem escolas que descobri muito tarde, como os Nazarenos Alemães.  

Da mesma forma, quase sempre sei quando vi uma obra-prima pela primeira vez.

A 'Mona Lisa' no Louvre, a Capela Sistina no Vaticano, o 'Abaporu' em Buenos Aires, 'A Tempestade' em Veneza.

Em alguns casos, fui a um museu só para ver um quadro, exclusivamente um: foi o caso da pintura 'O Balanço', de Fragonard, na Coleção Wallace, em Londres.

Aliás, não consigo recordar de nenhuma outra obra naquela mansão inglesa, ainda que seja um espaço muito agradável.

O Balanço - Jean-Honoré Fragonard (1767)

Quero falar de outra coisa.

Foi em algum ano da década de 1990. Eu tinha saído de horas no Museu do Prado, em Madri, e ainda tinha uma hora para aproveitar a luz e um museu aberto.

Caminhei até o Museu Rainha Sofia, a poucos metros dali. Objetivo? A 'Guernica', de Picasso.

Eu já era professor de História e, claro, já tinha falado do Cubismo, da Guerra Civil Espanhola, o bombardeio de Guernica e, por fim, a exposição de Paris na qual o quadro foi mostrado ao público.

Era um quadro repleto de história e de significado, uma das obras-primas do século 20.

Cheguei ao museu e fui direto à sala da obra. O tempo era curto. Naquela época, a gente olhava mais e fazia menos fotografias.

Fiquei ali, por uns 30 minutos, admirando o imenso painel em preto, branco e cinza. É uma obra, de fato, impressionante. 

Saí já cansado de muitas horas de pé e refleti comigo: Picasso é um gênio, o quadro é extraordinário, a obra tem significado artístico e histórico impactante e... eu não gosto.

Sim, confesso: o cubismo é muito importante, uma revolução que já expliquei inúmeras vezes para alunos e interessados.

Já fui com grupos ao MoMA, em NY, e ficava diante  de 'Les Demoiselles d’Avignon', mostrando o que representa aquela obra brilhante. E, mesmo assim, continuo não gostando de Picasso.

Guernica - Pablo Picasso (1937)

O pintor espanhol é um gênio e mudou os rumos da nossa percepção artística. Quem disser o contrário pouco sabe de arte. 

Quando digo que não gosto, é que vejo no cubismo sintético e analítico um exercício matemático, como vejo no chamado dodecafonismo musical.

São experiências racionais muito boas e necessárias. Jamais imaginaria ler um belo livro, ouvindo uma peça dodecafônica.

Quando eu digo não gosto, significa que compreendo um pouco do quadro, reconheço a inteligência dele, vejo ali um olhar que provocou uma ruptura de paradigma estético e, nada emotivo, intenso ou capaz de mover meu eu interior para sair da zona racional.

Quando fiquei a primeira vez diante dos quadros sobre São Mateus em Roma, na igreja de São Luís dos Franceses, comecei a chorar, a rir, a ficar mais bobo do que o normal ao ver a 'Vocação de São Mateus', de Caravaggio.

Não sabia bem o que dizer e, creio que, vinte anos depois, ainda não sei. A diferença entre as duas experiências? 

Picasso é uma genial equação matemática sobre o espaço; Caravaggio joga minha consciência no chão e me obriga a sentir coisas fora do comum.

A Vocação de São Mateus - Caravaggio (1599)

A arte é um signo aberto e o cérebro de qualquer pessoa é ainda mais randômico. Não existe uma explicação causal.

O plano cartesiano claudica no campo estético. Ocorre o mesmo com música e com esculturas.

Por vezes, leio um livro mediano e fico muito tocado. Já confessei, publicamente, que há clássicos da literatura que comecei a descobrir porque eram aclamados como importantes e segui a leitura … por birra. 

Esse e-mail é para que as pessoas se sintam um pouco mais livres para dizerem o que pensam de quadros, esculturas, músicas e textos que são incensados por muitos e que, por algum motivo, não fazem morada no seu afeto. 

Sejamos todos sempre livres para nosso prazer e gosto.

Apenas reconheçamos: meu gosto individual não canoniza alguém e nem derruba um clássico. 

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